O processo sigiloso do ano
Era terça-feira 14, dois jornalistas independentes - o Espaço e o Vital - almoçavam próximos, respeitando as regras da pandemia. Foi quando alguém ligou de cidade próxima à fronteira do Uruguai: “Chegou no tribunal a causa do ano, coisa de mais de R$ 1 milhão, reclamatória de uma cuidadora de idosos, contra uma jurista notória, seu irmão fazendeiro e a veneranda senhora mãe de ambos”.
O sotaque gauchesco ainda deu uma informação: “O relator decidiu pelo segredo de justiça. O sistema processual bloqueou o número do processo, que é formado por 20 dígitos. E não se fala mais nisso”.
E desligou. O Espaço e o Vital se puseram a campo, fizeram importantes contatos e, mesmo garantindo o sigilo da fonte e dando ênfase à garantia do “off total”, encontraram obstáculos. Ouviram escusas como “Estou impedido”; “Os advogados do caso foram meus colegas de faculdade”; “Estou ocupadíssima com um caso no CNJ”; “Minha mulher é amiga íntima da esposa do relator”; “Advogo em um supremo caso em que a douta jurista reclamada é relatora de um recurso meu”.
Os dois jornalistas foram então, protocolarmente, em busca de informação oficial. A resposta da Corte demorou um dia, e chegou atenciosa mas verborrágica:
“Seguindo diretriz da Comissão de Comunicação Social e Relações Institucionais do Tribunal, fornecemos o número apenas de processos relacionados às notícias de decisões judiciais divulgadas no nosso saite. Também prestamos informações à imprensa a respeito de processos em tramitação, mediante a indicação, pelo veículo interessado, do número da reclamatória. Como o pedido não se enquadra nos casos mencionados, não poderemos atendê-lo”.
Espaço e Vital, desenxavidos, puseram-se a pé no rumo de suas respectivas casas. No caminho, encontraram um jurista jubilado, o Doutor Bento de Ozório Sant´Hellena, a quem resumiram o caso e indagaram: “Em que artigo de lei se enquadra o segredo de justiça atribuído ao caso?”
O douto Doutor Bento foi cirúrgico na resposta imediata: “Há uma violação ao artigo 5º, inciso LX, da Constituição Federal, que determina que só se poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.
O jurista arrematou contrafeito: “A benesse dada enquadra-se em artigo nenhum, de código algum. Mas o diferencial ímpar e rutilante é que a elegante senhora reclamada, como habitante do Olimpo que é, não está entre os mortais como nós. Logo...”
Os três despediram-se. O Doutor Bento foi em direção à sua morada. O Espaço e o Vital, sempre independentes, seguiram a pé e, já distantes do prédio da corte, pararam extasiados contemplando a beleza das flores num lindo e organizado jardim.
O tribunal segue fechado, nas mais amplas acepções do termo. Estamos em pleno outono, o inverno vem aí, mas certamente o setembro primaveril nos trará rosas, cravos, girassóis e espadas de São Jorge.
Com e sem espinhos.
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