Confinar os negros em uma sala?
Todos nós aprendemos que entre a teoria e a prática há um abismo. Na década de oitenta houve uma intensa retomada dos movimentos sociais, fruto da redemocratização. Os movimentos estudantil, de moradores, e principalmente dos trabalhadores acumularam forças desde de meados dos anos setenta. Nesse período vieram a público entidades com uma trajetória política consolidada: UEE, UNE e CGT.
Alguns partidos lançados à clandestinidade, atuavam sob a inspiração de que a sociedade somente seria alterada se houvesse a chamada “aliança entre o campo e a cidade e operária estudantil”.
Isso levou aos sindicatos de trabalhadores um contingente de jovens estudantes de esquerda que se “profissionalizavam”. Ingressavam como empregados e, a partir daí, participavam dos sindicatos “por dentro”.
Em um congresso estadual de metalúrgicos, com a presença de delegados escolhidos nas fábricas, eram nítidos os sintomas da mudança. Havia a presença de metalúrgicos conhecidos, homens maduros, todos de um mesmo padrão e jovens também de um mesmo “modelo”. Como definiu o Brizola, certa feita, a um jornalista: “Barbudinhos de óculos redondos”.
Nas reuniões a participação tornava mais evidentes as diferenças. As retóricas de uns e de outras eram absolutamente distintas. Era “companheiro” para cá e para lá, “questão de ordem” permanente, etc.
Ao advogado que assessorava o evento a designação: “companheiro advogado”.
Era comum em poucas palavras o orador identificar-se como militante de esquerda: “... Temos que pontuar aspectos da realidade para contextualizar a nossa participação no sentido estratégico e não apenas tático.”
Os demais, os históricos como eram chamados, abordavam a legislação previdenciária, a salarial, a da assistência médica e o funcionamento da sede e das sub sedes do sindicato.
Sobe a tribuna um jovem com físico miúdo, cabelos encaracolados, cavanhaque, camiseta com o Che e óculos redondos como aqueles do Trotsky:
“Companheiros, as diferenças de condições exigem uma intervenção qualificada e também distinta. Temos em nossa categoria trabalhadores negros, mas não temos no sindicato uma política específica para eles. Assim, propomos a criação do Departamento do Metalúrgico Negro. Será um espaço adequado para tratar desses temas...”
A reação do plenário foi de absoluto silêncio, revertendo a expectativa do jovem teórico. Após alguns segundos, vem ao microfone um metalúrgico já de idade avançada e tasca o verbo:
“No ano em que o nosso sindicato completará 40 anos de vida, nunca esperei escutar algo como isso. O nosso sindicato sempre acolheu homens, mulheres, negros, pardos, brancos, casados, solteiros, viúvos, separados, etc. Todos sempre puderam circular pela sede sem qualquer limitação. Agora, vem a proposta de confinar os negros em uma sala, em um departamento...”
A reação foi a de um demorado aplauso, enquanto o jovem teórico não escondia a sua decepção.
O militante apreendeu que a questão racial não está presente entre trabalhadores que independentemente dela enfrentam uma mesma realidade social. Também, que para as relações cujo objeto é a produção industrial, pouco importa a cor do empregado. O que interessa é a produtividade.
O jovem foi visto muitos anos depois, ocupando um cargo importante no Ministério do Trabalho.
No dizer gauchesco: ovelha não foi feita para mato.
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