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20 de Abril de 2024
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    A exceção que atacou um magistrado

    Publicado por Espaço Vital
    há 6 anos

    Por Tarso Genro, advogado (OAB-RS nº 5.627) e ex-governador do RS.Artigo publicado originalmente por Sul21

    O livro do brilhante jurista Marcelo Neves, nominado “Transconstitucionalismo” (S.P. 2009, Edição do autor, 312 págs.) comentando uma decisão do STF (HC nº 82.424/RS) cujo julgamento “caracterizou como crime de racismo” a negação do Holocausto, mostra que tal decisão baseou-se não só na ordem jurídica nacional, mas também em precedentes do direito estrangeiro.

    O julgado invocou um caso específico (Jersild x Dinamarca), julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, em setembro de 1994. Diz Marcelo Neves: “Em muitos outros julgamentos, o STF apresentou indicações de sua disposição para integrar-se em um diálogo transconstitucional, em um sistema de níveis múltiplos, no qual diversas ordens jurídicas são articuladas concomitantemente para a solução de problemas constitucionais de direitos humanos.”

    A ordem da Constituição de 88 detém todos os elementos formais e institucionais para a garantia dos direitos fundamentais, para independência do Poder Judiciário, para um pleno e digno funcionamento do Ministério Público e para a operação democrática da representação política. Mas as “formas jurídicas” e os seus padrões de funcionamento, previstos na ordem, são permanentemente tensionados pelas mutações que estimulam – e às vezes se avolumam sua força no fim de um ciclo político e econômico – a emergência da “exceção”.

    Pode-se dizer que a ansiedade sem alma dos agentes econômicos contorce a ordem jurídica instalada em outros tempos, porque não pode mais extrair dela as suas expectativas de acumulação no terreno privado.

    O galopante processo de integração do mundo, todavia, não se faz só a partir das ordens jurídicas instaladas pelos respectivos poderes constituintes, reunidos em outras épocas. Também o faz – e hoje de forma predominante - por uma força normativa superior, que molda o mundo, ajusta os Estados, forma opinião através dos oligopólios midiáticos e impõe novos conceitos sobre democracia, direitos humanos, situações de “risco”.

    Ao mesmo tempo que esta força material reforma os Estados e a legislação do trabalho, retira das agendas nacionais os direitos sociais e os direitos humanos, obriga as ordens jurídicas formalmente instituídas a se comunicarem em defesa do humano e do social. É a regra democrática universal se voltando contra a “exceção”; o direito contra os novos poderes fáticos; a internacionalização dos valores jurídicos da estabilidade humanista socialdemocrata contra os fluxos de anomia, desordem, precariedade e exclusão.

    Neste contexto, estudado de forma profunda – no terreno jurídico – por Marcelo Neves, é que se inscreve nos dias que correm os grandes debates sobre a ordem democrática no Brasil, instalada pela Constituição de 88. Em outras condições econômicas globais de estabilidade, distribuição mínima de riquezas entre os povos do mundo e vigência material dos diplomas internacionais de proteção ao trabalho e à dignidade da pessoa humana, não seria possível aprisionar um Presidente da República, sem provas concretas de culpa.

    Seria impossível omitir da agenda jurídico-penal do país, a tentativa de homicídio contra este mesmo Presidente; seria impossível tornar irrelevante o assassinato impune de uma liderança comunitária de expressão de Marielle Franco e promover a destruição quase completa da esfera da política – onde se constrói a agenda democrática de qualquer país sério – substituindo-a pelo fluxo dos infantis comentários liberal-rentistas dos comentaristas da grande imprensa.

    Marcelo Neves lembra Hermann Heller, combatendo a unicidade ideológica e cultural forçada “por cima” do pacto político da Constituição, que assim não reflete o “consenso”, que vem precisamente da heterogeneidade de valores que ampara o pacto democrático moderno: “Toda a forma de Estado ético elabora sua própria concepção ética em vista dos valores que defende e dos fins que tem em mira atingir, o que leva ao totalitarismo, porque erige o Estado em fonte moral, de determinados critérios éticos, onipotentes e onipresentes, que não admitem qualquer comportamento, que não seja rigorosamente de acordo com a moral oficial.”

    O último ato violento da “exceção” no Brasil, que atingiu de forma dura a integridade do sistema de justiça, envolveu o despacho de “habeas-corpus” do juiz Rogério Favreto, duramente atacado pela exceção. Naquela oportunidade foi formado um sistema paralelo de poder – interno a este sistema – de clara excepcionalidade, pelo qual articuladamente com o oligopólio da mídia – um verdadeiro estado paralelo em operação no país – foi desconstruído o exercício normal das funções jurisdicionais de um juiz, cujo despacho poderia ser reformado dentro dos mecanismos previstos pela Constituição e do devido processo legal.

    Trocou-se aquele procedimento legal por uma solução rápida de “exceção”, quando foram usadas formas paralelas de convergência política – alheias ao devido processo legal – para que não fossem assumidos os “riscos” de uma soltura de Lula, que provavelmente tornaria inevitável a sua volta ao cenário político da disputa presidencial.

    O “Estado ético” da moral neoliberal contorceu o Direito da Constituição para ceder às ansiedades do mercado. Ao invés de proceder segundo uma dogmática concreta, de porte constitucional, o sistema de justiça funcionou no mercado paralelo do Direito e procedeu conforme a dogmática do mercado: este quer ver Lula preso ou morto, mas jamais na Presidência novamente.

    E assim se esvai o Estado de Direito e se consolida a exceção, até que consigamos não somente resistir, mas desencadear uma ofensiva unitária contra esta, que ali na esquina pode tornar-se fascismo expresso e declarado.

    Favreto mostrou coragem e dignidade. E Raquel Dodge começa – processando-o como pretende – a integrar-se no novo sistema de poder, de forma surpreendente e dramática para o futuro da nossa democracia.

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