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27 de Abril de 2024
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    A dispensa coletiva não é livre

    Publicado por Espaço Vital
    há 6 anos

    Artigo dos advogados Tarso Genro (OAB-RS 5.627 *) e Jefferson Alves (OAB-RS nº 89.504 **).
    tarso@portoweb.com.br e jefferson@cspm.adv.br

    A definição de políticas públicas eficientes se assenta no conhecimento material do território da sua incidência. Tal axioma levou a constituição da Fundação de Economia e Estatística – FEE - em 1973, no RS. A Lei Estadual nº 14.982/2017, proposta pelo governo atual, prevê a extinção desta instituição, com a indicação de demissão coletiva dos seus trabalhadores, que são celetistas.

    Estes episódios estão no contexto normativo do Direito do Trabalho, que surge para interferir na assimetria entre os ofertantes e os demandantes da força de trabalho. A vontade privada do empregador, nas origens da sociedade industrial, era absoluta e o poder concreto do tomador de serviços era reforçado pela sua faculdade de romper o vínculo contratual de forma unilateral, lastreado no direito do proprietário. Na sua evolução o Direito do Trabalho compôs uma disciplina legal e doutrinária, original, herdeira de uma nova ordem social emergente, a ordem socialdemocrata, na qual estes poderes foram relativizados.

    Um dos princípios mais importantes, inclusive indutor desta doutrina forjada nesta evolução, foi o da "continuidade" do pacto laboral, permitindo que Plá Rodriguez – o mestre dos “Princípios” - pudesse afirmar que a principal expressão deste princípio da continuidade era "a resistência oposta à rescisão do contrato, por vontade unilateral do empregador” [1].

    O nosso direito positivo laboral – como é solar - confere aos princípios e normas gerais do Direito do Trabalho" precedência sobre os princípios gerais de direito ". “(...) os princípios que a nossa legislação denomina de princípios gerais do Direito do Trabalho não se aplicam aos demais ramos do direito, razão pela qual preferimos intitulá-los, como geralmente fazem os doutrinadores, de princípios específicos, peculiares ou especiais, ao invés de princípios gerais, com o que estaremos evitando confusões e equívocos” [2].

    O princípio da continuidade é o quinto princípio jurídico especifico do Direito do Trabalho. Ele já tinha sido"configurado pelo Tribunal do Trabalho do Reich, que o consolidou através de reiterada jurisprudência, consoante a informação de Hueck e Niepperdey”. Já, à época, ele se conjugava com o princípio geral da igualdade formal, pois esse princípio já era reconhecido, há longo tempo, no direito regulatório das sociedades, aplicável na solução das contendas entre os sócios.

    O Tribunal do Reich, na oportunidade, considerou justo que tal princípio, vigente na comunidade da empresa entre os sócios - condições de igualdade entre eles na relação com a instituição (empresa) - fosse reconhecido aos seus trabalhadores, que deveriam ser caracterizados como “iguais” (ou análogos) aos sócios quando fossem afastados da empresa. Isso implicou em concluir "que o tratamento igual, diante de casos semelhantes, é uma exigência geral de justiça”, transitando este princípio para o direito laboral, quando adquirem densidade especial nas relações entre desiguais, o tomador e prestador de serviços. [3].

    Ou seja, o Tribunal do Reich, entendeu, à época, que as empresas deveriam ter o mesmo “cuidado” com seus trabalhadores que reconhecia aos sócios, quando do seu afastamento da sociedade.

    O princípio da continuidade foi acolhido no Pacto dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais (1966), ratificado pelo Brasil em 1992. O “término” do contrato, portanto, passou a ser um elemento acidental do negócio jurídico, tal como ensina Riva Sanseverino: a continuidade da relação é a regra e o" termo "(fim), a exceção, princípio que então beneficia o contratante economicamente mais débil, o trabalhador [4].

    Não é gratuito, portanto, que a Constituição de 1988 tenha alçado o trabalho ao status de"direito social fundamental"no artigo , adotando o princípio da continuidade como balizador da temporalidade dos contratos de trabalho. Esta é a racionalidade dogmática dos princípios, no Estado Social, que inseriu no inciso I do artigo da Constituição Federal o direito à relação de emprego e a vedação da despedida arbitrária ou sem justa causa.

    Vejamos a doutrina internacional:"Al hablar de derechos fundamentales nos estamos refiriendo, en términos generales, a aquellos derechos que constituyen instrumentos de protección de los intereses más importantes de las personas, puesto que reservam los bienes básicos necessários para poder desarrollar cualquier plan de vida de manera digna. Estos derechos están previstos em los textos constitucionales y los tratados internacionales, y protegen los interesses más vitales de toda persona, con independência de sus gustos personales, de sus preferências o de cualquier outra circustancia que pueda caracterizar su existência.” [5]

    Ferrajoli, apresentando a obra de Abramovich e Courtis [6], sustenta que os direitos fundamentais e sociais são judicialmente exigíveis, concluindo que, da consagração do direito ao trabalho decorre, imediatamente, que a despedida injustificada viola esse direito fundamental. Nas despedidas de caráter coletivo esta vedação assume um especial caráter tutelar, pois, o dano individual da rescisão unilateral e arbitrária tende a tornar-se crise social.

    A Organização Internacional do Trabalho estabeleceu as premissas para a obstrução da finalização das relações de emprego, ao editar a Convenção 158, positivando no Direito Internacional Público o princípio da continuidade. O Brasil ratificou esta Convenção, então internalizando aquela garantia convencional em nosso ordenamento, depois denunciou-a.

    A denúncia, pelo ordenamento da OIT, cabe ao Estado-Membro, que não pode ser reduzido ao Chefe do Executivo. O Presidente da República, à época, unilateralmente, denunciou esta Convenção, publicando o Decreto 2.100 em dezembro de 1996, ensejando uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1.625 de 1997), fundada na impossibilidade de revogação (por ato unilateral do Chefe do Executivo Federal) de norma com status superior a lei ordinária (supralegal, conforme decisão do STF no RE 466.343/SP). A denúncia, porém, não proporciona a invalidade absoluta da norma jurídica geral, pois um Tribunal, em sede de controle difuso da constitucionalidade, pode "reconhecer esta norma jurídica geral numa outra hipótese igual, de modo que uma norma jurídica geral pode valer aqui – indiretamente – e num outro caso igual não valer", mesmo que o enunciado geral possa ser verdadeiro numa circunstância e, numa outra igual, ser falso. [7]

    Igual entendimento quanto à ineficácia da denúncia da Convenção 158 e sua aplicabilidade, em controle de convencionalidade, está consignado na manifestação da Procuradora-Geral da República Raquel Dodge nos autos da ADPF 486 [8], intentada pelo governo do Estado do RS requerendo o afastamento das decisões dos Magistrados do Trabalho quanto à obrigatoriedade de negociação coletiva para dispensa dos empregados públicos.

    Na mesma manifestação, a PGR assinalou que “não há [que] falar em direito potestativo do empregador público sobre a demissão”, referindo que a “rescisão simultânea e coletiva de centenas de vínculos de emprego, pelo impacto social que dela decorre e pela natureza coletiva dos direitos afetados, constitui matéria própria de negociação coletiva com as entidades sindicais representativas, eis que o valor social do trabalho figura como fundamento do Estado Democrático de Direito”.

    A força de trabalho é, em termos econômicos, “mercadoria”, mas o portador desta força, o trabalhador, não é uma mera mercadoria e assim não pode ser tratado. Este é o roteiro do princípio da continuidade. Esta ultrapassagem do trabalho, do universo objetivo da economia para esfera subjetiva do Direito, promove uma alteração na dogmática constitucional do Estado Social, que está ancorada na nossa Constituição (§ 2º do artigo 5º). Ela incluiu entre os direitos e garantias fundamentais, aqueles que constem de tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte, quando dispôs (no § 1º), que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

    Em face destes enunciados, com maior força se impõe a interpretação assumida por Ferrajoli, defendendo, como efeito imediato da consagração do direito ao trabalho, a vedação das despedidas imotivadas e, com maior razão, nas demissões coletivas, referidas na Convenção 158 da OIT.

    Cumpre destacar que o já referido Pacto dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais também obriga os Estados-Membros signatários a empregar os esforços necessários para implementação dos atos concretos, deliberados e orientados para a satisfação completa das obrigações assumidas, privilegiando também o princípio da proibição do retrocesso social, claro nos artigos , inciso II, e , caput, da Constituição de 88. O Brasil praticou os atos que atenderam os ditames do Pacto, positivando como direitos fundamentais o direito ao trabalho, na Constituição, e depois disso ratificando a Convenção 158.

    A sua denúncia arbitrária e a resistência do STF, até agora, em julgar a inconstitucionalidade da denúncia da Convenção 158, soam como evidente movimento de "retrocesso", vedado no referido Pacto e na Constituição Federal.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/a-dispensa-coletiva-nao-e-livre/552157008

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