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24 de Abril de 2024
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    A retratação

    Publicado por Espaço Vital
    há 11 anos

    Comarca de São Francisco de Assis (RS), meados do século passado. O fórum funciona em um prédio muito antigo. Rua larga e arenosa, movimento de veículos reduzidíssimo. O juiz está despachando com o escrivão quando chega um grupo de gaúchos: o querelante, o querelado e algumas das testemunhas. Amarram os cavalos, atravessam a rua para deixar os cinturões e revólveres pendurados na porta de uma ferraria do outro lado da rua. Voltam e entram na sala de audiências, com fisionomias nada alegres.

    Querem trazer ao juiz, civilizadamente, um grave caso de difamação. Fulano toma a palavra e narra que um seu parente, o Beltrano, havia na véspera, num bolicho, "falado mal" da esposa dele, querelante. Considerando as relações familiares, convieram em não resolver o causo pelas vias de fato, mas pela decisão do novo juiz, fazia pouco chegado de Porto Alegre, "o qual merece confiança, até porque é casado com moça nascida no município".

    Ouvido o querelante, o juiz dá a palavra ao acusado, e este diz, constrangido, que "tudo era um mal-entendido, ele respeitava muito a esposa do acusador, e até estava pronto a afirmar isso em público".

    - Ótimo! - afirma o magistrado. Um acordo é sempre a melhor solução, mais ainda em questões entre familiares e vizinhos. Assim, o escrivão vai tomar por termo o desmentido do querelado, e tudo volta às boas.

    Mas o queixoso não se conforma, alegando que a ofensa fora feita em público, e o tal termo - que ele aliás não sabia o que era - não teria publicidade.

    - Não há problema - responde o juiz. O escrivão tira uma cópia, o senhor leva e pode colar na porta do bolicho.

    - Mas não adianta, doutor, muitos não sabem ler direito e nem vão entender. Prefiro que o linguarudo faça o desmentindo lá mesmo, no domingo que vem.

    - A ideia é boa - diz o juiz. O senhor, seu Beltrano, concorda em fazer o desmentindo em público?

    - Pois é, seu doutor, se é para resolver em definitivo, está bem, então concordo - diz o acusado.

    Assim ajustados, Fulano e Beltrano e os acompanhantes montam em seus pingos e retornam aos pagos. O querelante leva um bilhete do juiz ao inspetor de quarteirão (espécie de sub-prefeito), nestes termos: "Sr. Inspetor. Tendo em vista terminar com a questão surgida entre o queixoso Fulano e o senhor Beltrano, determino que no domingo que vem, no bolicho do rincão, o senhor esteja lá e providencie na retratação de Beltrano, na presença dos frequentadores. E me comunique o que ocorrer. Saudações.

    Na segunda-feira seguinte, para surpresa do juiz, estão todos de volta. Mas o magistrado logo nota os semblantes desanuviados, querelante e querelado se tratando cordialmente.

    E Fulano entrega a resposta do Inspetor de Quarteirão: Senhor juiz. Impossível cumprir vossas ordens de retratação. Motivo, não tem retratista aqui no rincão.

    E agora? Neste passo o escrivão, prestativo, com sagacidade intervem:

    - Doutor, chegou um retratista aqui na cidade, atende lá na rua ao lado da Igreja, perto dos fundos da Prefeitura.

    - Vamos lá, então - propõe o ex-querelante, com geral concordância. Vão e não voltam mais. Ótimo sinal de que tudo retornara ao ´statu quo ante, com aplauso às vantagens da ´modernidade processual, em que uma boa fotografia dos desavindos, sorridentes e concordes, dá o testemunho definitivo da volta da paz e da harmonia.

    * * * * *

    A" retratação " feita, afinal, num" retrato " está, tim-tim por tim-tim, no livro Causos de São Chico e outras querências, contada em três páginas pelo então próprio juiz da causa, Athos Gusmão Carneiro. Por razões de espaço, foi sintetizada pelo editor do EV, com homenagens, aqui, ao insigne jurista.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/a-retratacao/100499016

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