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20 de Abril de 2024
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    O futebol, as formas e os limites éticos de uma sociedade

    Publicado por Espaço Vital
    há 11 anos

    Por Arthur M. Ferreira Neto (RS),

    advogado e professor universitário

    As instituições de uma determinada sociedade são forjadas pelas expectativas éticas que os seus cidadãos possuem. Uma sociedade com instituições fortes é sempre o reflexo do tipo de cidadão que nela vive e dos parâmetros éticos nela fixados. Já o desapego geral por compromissos éticos reflete-se em instituições frágeis e em indivíduos que buscarão de todas as formas se beneficiar de tais fragilidades para concretizar vantagens sabidamente ilegítimas.

    No Brasil, tanto o direito, quanto o futebol podem ser compreendidos como estruturas institucionais que se apresentam como ótimos indicadores do grau de comprometimento ético que o brasileiro possui.

    O fato recente envolvendo a partida de futebol entre Internacional e Palmeiras nos apresenta um ótimo exemplo para se refletir sobre essas questões: o jogador palmeirense cometeu, claramente, um ilícito (gol com o uso da mão), o qual foi corrigido por meio de outro, suposto, ilícito (interferência externa de pessoa não habilitada para arbitrar o jogo). Nesse cenário, não se discute a legitimidade do gol com a mão, mas tão somente a necessidade de ter sido observada a forma jurídica para a anulação dessa jogada.

    Admitindo-se como verdadeiro o fato de que foi desrespeitada a forma jurídica para a anulação de um gol, muito se tem falado sobre as consequências éticas da divergência que agora se instaura por força do questionamento veiculado pelo Palmeiras, que pretende anular a partida realizada e todos os seus efeitos. Em termos éticos, o conflito pode ser enfrentado e, possivelmente, resolvido por meio do recurso a duas propostas teóricas que a filosofia moral há muito tempo já desenvolveu.

    Primeiramente, o caso pode ser analisado pela perspectiva da chamada doutrina (ou princípio) do duplo efeito (´doctrine of double effect´). Ela é normalmente invocada em situações nas quais se justifica a permissividade de um ato que provoca colateralmente um mal ou que é formalmente ilícito (e que, por isso, provoca uma rusga na ordem estabelecida), mas que visa a resguardar ou proteger um fim, moralmente, mais relevante.

    Por exemplo, tal princípio pode ser invocado na justificação de se dirigir um automóvel na contramão (atentando contra a segurança de outros motoristas), com o intuito de levar uma pessoa em risco de morte ao hospital. Essa proposta teórica, além de ser a base ética para estruturas jurídicas como a legítima defesa e o estado de necessidade, também pode ser utilizada em casos menos extremos, como, por exemplo, o de não parar o carro em uma sinaleira de trânsito, durante a madrugada, em uma rua deserta, com o intuito de evitar ser assaltado (o exemplo, obviamente, pressupõe o contexto de violência típico do Brasil).

    Nesses casos, a intenção do agente não é a de romper com a ordem jurídica nem a de desrespeitar a segurança que é devida aos outros motoristas e pedestres. O fim mais relevante é o de salvar uma vida ou de resguardar a própria integridade física.

    Simplificando a aplicação do princípio do duplo efeito, pode-se dizer que ele pressupõe que:

    a) o objeto da ação seja, em si, correto;

    b) o agente tenha intenção de realizar o efeito desejável ou louvável e não a intenção de produzir o efeito ilícito;

    c) haja uma concomitância na produção do efeito positivo e do efeito negativo, de modo que não seja cometido, agora, o ilícito para, num futuro eventual, produzir-se um efeito moralmente mais relevante; e

    d) os efeitos positivos superem em valor os efeitos negativos que foram, indiretamente, produzidos.

    Poderia ser sustentado que a suposta intervenção exterior na invalidação de gol feito com a mão representa ilícito que é considerado, no contexto concreto (e não em todos os casos hipotéticos), como permissível ou tolerável, uma vez que o objeto e a intenção da ação eram o de evitar que uma jogada nula fosse considerada válida, ação essa que não visou, em nenhum momento, prejudicar o time do Palmeiras, já que a própria noção de prejuízo, conceitualmente, pressupõe uma pretensão legítima que foi agredida (o que, no caso, não se dá, pois não há legitimidade em se marcar um gol com a mão).

    Além disso, os efeitos positivo e negativo do suposto ato de intervenção exterior foram produzidos de modo concomitante, pois o influenciar a anulação correta de um gol inválido e o descumprimento da formalidade jurídica necessária para essa anulação se deram simultaneamente. Quanto ao último requisito, certamente poderia haver divergências interpretativas acerca do que é mais valoroso (impedir a invalidação de um gol nulo ou respeitar-se a ordem estabelecida no que se refere às regras de arbitragem), mas não soa absurda a leitura que reconhece, dentro do contexto fático que se apresenta, como mais relevante, em termos morais, a anulação de um gol, confessadamente, inválido. Esse ponto, aliás, reflete-se no segundo argumento ético que se pode invocar no presente caso.

    Em segundo lugar, o caso pode ser solvido por meio da invocação de um princípio ético, bastante conhecido no campo do direito: o de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. Evidentemente, o time paulista busca, por meio de tal atitude, extrair uma vantagem indevida, a qual teve como causa originária ato ilícito cometido por seu próprio atleta.

    Não há dúvida de que as formas jurídicas devam ser respeitadas em situações de normalidade. No entanto, não se pode desprezar, na apreciação dos efeitos gerados nesse caso, um princípio maior e anterior de contornos não apenas éticos, mas também jurídicos que proíbe que alguém se beneficie da própria atitude torpe. A intenção dos representantes palmeirenses, por certo, não é apenas a de coibir a prática ilegítima de interferências externas nas partidas de futebol. Se fosse esse o caso, a punição disciplinar de todos os envolvidos, inclusive do seu atleta, seria a forma correta para se restabelecer a ordem jurídica violada.

    Na verdade, busca obter dupla vantagem indevida, qual seja a de ter a infração cometida por seu jogador apagada, bem como a de ganhar nova oportunidade de disputar o jogo. Nesse contexto, não há dúvida que o time paulista busca beneficiar-se da sua própria atitude ilícita, colocando em situação de prejuízo apenas aquele que não teve participação direta na prática de nenhum dos dois ilícitos cometidos, i.e. o time do Internacional.

    Mesmo que se possa discutir as implicações jurídicas do caso o que não está aqui sendo analisado , ninguém poderia afirmar que a atitude do clube paulista seja eticamente louvável.

    Aliás, essa situação, faz-me lembrar de episódio ocorrido em uma instituição de ensino em que a mesma proteção a formas veio a ser invocada com o intuito de legitimar práticas, sabidamente, ilícitas. Um professor aplicou a sua prova em duas turmas, em salas diferentes, uma de frente para a outra, mas em períodos distintos do mesmo dia. Na primeira turma, talvez por descuido, permitiu que os alunos colassem as respostas uns dos outros. Já na segunda turma, mais atento, coibiu, energicamente, tal prática.

    Após a avaliação nas duas turmas, os alunos da sala em que não se permitiu a cola foram à Direção da Faculdade para requererem a anulação da prova, já que, na outra sala, a cola havia sido tolerada pelo professor.

    Veja-se que os alunos, sem dúvida alguma, possuem o direito de receber um tratamento equânime por parte do professor, mas desse direito jamais se pode extrair, em nome da igualdade, a pretensão ilegítima de livremente colar!

    Tais episódios nos fazem entender porque as instituições sejam jurídicas, desportivas ou acadêmicas não são outra coisa senão o reflexo do compromisso ético dos indivíduos que as compõem e nos levam a pensar que, aparentemente, o clamor por respeito às formas, no Brasil, apenas surge naquelas situações em que a intenção, não é a de se restaurar parâmetro ético violado, mas o de garantir um salvo-conduto para o cometimento de ilícitos.

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    arthur.ferreira@veirano.com.br

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