Estupro e lesão leve no ambiente familiar
Por Damásio de Jesus, penalista e professor, diretor do Complexo Jurídico Damásio de Jesus
No dia 9 de fevereiro do corrente ano, com fundamento no voto do ministro Marco Aurélio, o Plenário do STF, na ADIn nº 4.424, por 10 votos a 1, considerou pública incondicionada a ação penal por crime de lesão corporal leve cometido no âmbito familiar e doméstico, dispensando a representação para o inquérito policial e o processo.
Na ocasião, o ministro Cezar Peluso, único a divergir, alertando sobre os riscos sociais da decisão, afirmou: "Se o caráter condicionado da ação foi inserido na lei, houve motivos justificados para isso" (Combate à violência contra a mulher avança no Brasil. Revista Justiça & Cidadania, Rio de Janeiro, Editora JC, p. 25, mar. 2012).
Na mesma oportunidade, estava com inteira razão o ministro Gilmar Mendes, ao observar que, em muitos casos, a ação penal incondicionada poderá ser um elemento de tensão e desagregação familiar (idem).
Agora, passados alguns meses da decisão, tempo durante o qual os doutrinadores examinaram as consequências do pronunciamento do STF, tornam-se reais as preocupações dos ministros Peluso e Gilmar Mendes, previsões sobre as quais vínhamos alertando ("A natureza da ação penal por crime de lesão corporal leve cometido contra mulher no âmbito doméstico e familiar" - Carta Forense, São Paulo, jun. 2012, p. A-6).
Considerando que a decisão do Pretório Excelso não cuidou do estupro praticado no ambiente doméstico e familiar, suponha-se que sejam cometidos, em momentos distintos, porém próximos, dois crimes no ambiente familiar e doméstico:
1 - O marido agride a esposa, maior e não vulnerável, ferindo-a ligeiramente (crime de lesão corporal leve);
2 - Dias depois, ele a constrange, mediante violência física causadora de lesão corporal leve, a praticar ato libidinoso diverso (crime de estupro). Quais os efeitos da decisão do STF?
São contraditórios. Estranhamente, no primeiro caso, o crime de lesão corporal leve será de ação penal pública incondicionada; o de estupro, de ação penal pública condicionada à representação. Como é que a persecução penal, em relação ao delito de menor gravidade (lesão leve), não depende da vontade da vítima e, no tocante ao de maior gravidade (estupro), condiciona-se à representação? Essa contradição entre a Súmula nº 608 e a legislação penal, já indicada pela doutrina, mostrou-se mais evidente com a decisão do STF, conforme notou o cientista jurídico Paulo Souza, autor original da observação.
Não se desconhece que, antes da ADIn nº 4.424, o Excelso Pretório havia enunciado a Súmula nº 608, com fundamento na regra da ação penal no crime complexo prevista no art. 101 do Código Penal, oriundo do art. 131 do CP italiano: "No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada". Assim, poder-se-á argumentar: no âmbito familiar e doméstico, da mesma forma, estupro com lesão corporal leve é também crime de ação penal pública incondicionada.
Não é nosso entendimento. Em primeiro lugar, o estupro com violência física de que resulta lesão corporal leve não é delito complexo (JESUS, Damásio de. Direito Penal. São Paulo: Saraiva. v. I, ação penal no crime complexo). O art. 131 do CP italiano tratava do crime complexo em sentido amplo; o nosso art. 101 do CP conceitua o delito complexo em sentido estrito, que exige a fusão de dois tipos criminais.
Ora, o estupro (art. 213) é o constrangimento ilegal (art. 146) acrescido da conjunção carnal e do ato libidinoso diverso, os quais, "por si mesmos", não são delitos. Além disso, os arts. 102, 225, caput, do CP, que, no caso, impõem ao marido estuprador a ação penal pública condicionada à representação da vítima, não foram revogados pela Lei n. 12.015/2009.
Se o agente, no âmbito doméstico e familiar e em um só contexto de fato, tivesse estuprado a esposa mediante agressão física, causando-lhe lesão corporal leve, aplicado o princípio do concurso aparente de normas na espécie subsidiariedade implícita, responderia só por um crime, o de estupro, absorvida a lesão, sendo condicionada a ação penal. Se, contudo, na progressão criminosa propriamente dita, cessasse a conduta na lesão corporal leve, desistindo do estupro, responderia somente por aquele crime (de lesão corporal), de ação penal incondicionada, segundo o STF.
Isso tudo lembra o famoso "mate, mas não estupre". Hoje, "estupre, mas não agrida".
jesus-damasio@uol.com.br
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