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20 de Abril de 2024
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    A medicina e a religião

    Publicado por Espaço Vital
    há 12 anos

    Por Fabio Rodrigues F. Lima (promotor de justiça),

    Sandra Franco e Nina Neubarth (advogadas).

    U m tema antigo, e igualmente polêmico, o qual nem o tempo foi capaz de solucionar questão peculiar, na qual os direitos e deveres são contrapostos e a fé e a medicina se enfrentam. No dia a dia das entidades hospitalares, nas quais as decisões devem ser tomadas em segundos, a ausência de uma definição pela doutrina jurídica e na jurisprudência pátria dificulta a decisão de médicos e pacientes.

    A ssim, em determinados casos, impõem-se desvendar quais os direitos constitucionais devem ser resguardados: o direito a vida ou a liberdade religiosa, ambos direitos fundamentais imutáveis. As normas vigentes trazem ainda conflitos entre deveres dos médicos e direitos dos pacientes; a qual se deve atender?

    S em dúvida, um dos principais conflitos entre a medicina e a religião dá-se pelo procedimento da transfusão de sangue. Os seguidores da religião Testemunhas de Jeová têm como crença a impossibilidade da realização da transfusão de sangue; para eles o sangue de outrem é impuro, moralmente contaminado.Uma das justificativas está nas citações bíblicas como Gênesis (9,3 a5), Levito (17,10) e em Atos (15,20), nas quais se afirma que é um princípio cristão não consumir sangue, não havendo diferença entre consumi-lo por via oral ou intravenosa.

    C om o avanço da medicina, apresentam-se inúmeras alternativas de tratamento àqueles que se recusam a realizar a transfusão de sangue. No entanto, em alguns casos os médicos, a única forma a salvaguardar o paciente é a realização da transfusão de sangue, sob pena de sequelas ou mesmo de óbito.

    E ntra-se, então, no referido conflito aparente de direitos constitucionais: seria a vida mais importante do que a liberdade religiosa? Partindo do pressuposto de que nenhum direito é absoluto, a doutrina e a jurisprudência apontam que ambos os direitos devem ser cotejados e colocados na balança da proporcionalidade. Assim, o conflito será sempre aparente, pois o direito de maior valor se sobreporá ao de menor valor, segundo o princípio da convivência harmônica das liberdades públicas.

    E m determinados casos, é mais fácil a aferição do direito considerado de maior valor. Veja o caso de determinadas seitas religiosas que pregam um suicídio coletivo de seus fiéis quando de determinado acontecimento, como a seita americana "Heavens Gate" , na qual dezenas de fiéis cometeram suicídio coletivo esperando irem embora da terra na cauda do cometa Halley, em 1997. Neste caso, claramente o direito à vida se sobrepõe ao direito à liberdade religiosa, que cai por terra, sendo possível e legítimo todo e qualquer ato para se evitar as dezenas de mortes.

    E m outros casos, pode não ser tão fácil se aferir qual o direito de maior valor. No caso da transfusão de sangue, para maioria da população, em especial àqueles que não são seguidores das Testemunhas de Jeová, a resposta seria unânime: a vida deve se sobrepor a tudo. Porém, a crença religiosa, a fé daqueles que optaram pela não realização do procedimento, gera um conflito moral interno, em que o descumprimento das regras religiosas são piores do que a morte.

    D ifícil julgar quando não se tem a crença naquilo que se sobrepõe a vida. No entanto, algumas normas jurídicas devem ser observadas, seja pelos médicos, seja pelos seguidores das Testemunhas de Jeová. A lei é igual para todos independente de crença.

    O Código de Ética Médica prevê a autonomia do paciente em decidir, após esclarecimentos dos riscos e consequências, que pode optar por determinado tratamento médico. Por outro lado, o mesmo ordenamento legal determina que é dever do médico se utilizar de todos os meios para curar a enfermidade e salvar a vida de seu paciente.

    P arte da jurisprudência entende pela desnecessidade de previamente se recorrer ao Judiciário para solicitação da realização do procedimento de transfusão de sangue. Todavia, não raro temem os médicos sofrer processos judiciais, com pedidos de indenização por descumprimento da autonomia do paciente. Desta forma, inclusive em determinados casos de urgência, havendo tempo, alguns médicos optam por terem um respaldo judicial para a realização do procedimento.

    D iante das normas legais, dos deveres das partes e do aparente conflito de direitos, devem ser feitas algumas distinções principais nas quais é possível aos pacientes ter sua autonomia assegurada.

    E m um primeiro plano, temos que distinguir as hipóteses em que determinado paciente é considerado hipossuficiente pela legislação, como por exemplo, as crianças e adolescentes. Neste caso, as normas que regem a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA Lei 8.069/90) adotaram a doutrina da proteção integral, pondo a salvo as crianças e adolescentes de qualquer situação prejudicial a seus interesses (ECA, arts. , , e ), sendo dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida e à saúde... (CF, art. 227, e ECA, art. 4º); bem como dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente (ECA, artigo 70).

    A ssim, reforça-se a imposição ao profissional da saúde de salvaguardar a vida e a integridade física do infante, caso sua avaliação conclua pela necessidade da transfusão de sangue, não havendo outra alternativa. I gual raciocínio deve ser aplicado aos idosos, por exemplo, com fulcro no Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/03).

    J á quanto aos demais pacientes que se encontram em condições de manifestar sua vontade, embora deva ser respeitada a sua autonomia, deve o profissional da saúde analisar a urgência do procedimento e a capacidade do paciente de se expressar, diante de determinada enfermidade. Nesses casos, será o médico quem deverá decidir o melhor procedimento a fim de dar cumprimento ao seu dever de salvaguardar vida, buscando conciliar o mencionado princípio constitucional da proporcionalidade e outras normas que impõe este dever (Código de Ética Médica e art. 146, § 3º, I, do Código Penal, entre outros). Tarefa complexa e ainda sujeita a consequências ao profissional de saúde, nas esferas cível, criminal e administrativa, independente da decisão que tomar.

    P or tudo, assenta-se que nenhum direito pode ser considerado absoluto.

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    faropj@uol.com.br

    drasandra@sfranconsultoria.com.br

    nneubarth@sfranconsultoria.com.br

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    A principal razão das Testemunhas de Jeová rejeitarem a transfusão sanguínea tem a ver com a ordem bíblica sobre abster-se de sangue. Em nada tem haver com “sangue impuro” ou “moralmente contaminado”. Uma segunda razão tem que ver com o tipo de tratamento que desejam receber, ou seja, o melhor tratamento possível. Tem-se veiculado que somente a transfusão de sangue pode salvar vidas, isso, porém, é uma inverdade. Existem inúmeros tratamentos alternativos ao uso do sangue que o substitui mesmo em risco iminente de morte. É comum vermos médicos requisitando transfusões de sangue deliberadamente. Falo isso por experiência própria, tive três pedidos de transfusão em menos de uma semana porque o nível de hemoglobina estava baixo. Frente a minha recusa de transfusão, os médicos optaram pela aplicação de eritropoietina, em duas semanas eu estava com minha saúde totalmente restabelecida. Neste exemplo vemos como é corriqueiro o pedido de transfusão por parte de alguns médicos.
    É comum vermos médicos que se recusam a ampliar os seus conhecimentos sobre alternativas à transfusão. Orgulho? Desinteresse? Comodismo? Talvez... mas enquanto houver este tipo de postura por parte de alguns médicos, os pacientes serão submetidos desnecessariamente à transfusões e expostos ao risco de contrair doenças como hepatite, aids e tantas outras. continuar lendo