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19 de Abril de 2024
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    As duas legalidades

    Publicado por Espaço Vital
    há 12 anos

    Por Sander Félix Morais, analista judiciário do TRF-4

    Não é preciso ter lido Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, para reconhecer que, no Brasil, a legalidade formal, apenas de aparência, desvinculada de uma justiça efetiva, sempre foi muito bem cultuada entre nós.

    Jorge Amado, cujo centenário celebra-se este ano, assim como José Lins do Rego, souberam muito bem expor as imposturas do poder patrimonialista, de coronéis que provavam sua força política quando conseguiam absolver um acusado de homicídio diante do júri popular.

    A decadência de um coronel se manifestava quando ele não conseguia proteger um apadrinhado seu e o sujeito era condenado, ou seja, caía nas garras da verdadeira república, aquela em que todos estão submetidos à lei (no coronelismo, aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei).

    Quando a televisão repetidas vezes mostra a famigerada cena de Sônia Braga (Gabriela) em cima do telhado está fazendo apenas uma caricatura do escritor baiano, já que a sua obra tem aspectos muito mais interessantes e perenes do que um despudor, quiçá anacrônico (o corpo feminino desnuda-se na tela do computador; não precisa mais subir no telhado).

    A outra vertente dessa legalidade de verniz é quando reconhecemos o direito, mas dificultamos o seu exercício. Em quase todos os concursos públicos existe o sistema de cotas para deficientes. O detalhe é quando, em concursos longos, com várias etapas, o edital prevê que o candidato deverá, antes da primeira prova, submeter-se a uma junta médica.

    Não há a menor razoabilidade nesse procedimento, que deveria ser realizado ao final, se porventura o candidato tivesse logrado aprovação nas etapas anteriores. Homenageia-se, de forma velada, o bairrismo, já que o candidato de um outro estado, por exemplo, não vai deslocar-se de longe para um procedimento que pode resultar completamente inútil, caso ele não venha a ser aprovado nas etapas seguintes.

    A batalha judicial envolvendo o sistema de cotas raciais também é significativa. Praticado em todos os países desenvolvidos, aqui entre nós o sistema de cotas sofre resistência porque, afinal, não temos nada contra o índio, desde que ele esteja vendendo artesanato na porta do supermercado.

    A legalidade efetiva, substancial (que trata os desiguais na medida em que se desigualam), ainda nos é intragável. Acabou de falecer Rodney King, que em 1991, em Los Angeles, foi covardemente agredido por policiais. As imagens da agressão rodaram o mundo porque alguém filmou. Em 1992 os policiais acusados da agressão foram absolvidos. Resultado: houve uma revolta popular, conhecida como os distúrbios de Los Angeles, com registro de mais de 50 mortes.

    Isso aconteceu nos Estados Unidos. País bárbaro? Ou talvez lá não se aceite, como aqui se aceita, a existência de um país legal, só para bonito, e outro país real, que acontece nas ruas. Nós não nos revoltamos quando as leis não são cumpridas, afinal, nosso espírito cordial é o outro lado da moeda da nossa hipocrisia.

    sandermorais@ig.com.br

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/as-duas-legalidades/3170641

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